Kristin (ou Cristina) Lavransdatter e o detestável hábito de soltar pedras

 

A família de Cristina chega a Joerundgaard, ela tem por volta de seis anos de idade, é a partir daí que acompanhamos sua vida e seu entorno, de modo que Sigrid Undset vai nos mostrando, sem que saibamos, elementos que serão importantes pra história quando essa chegar ao seu ápice; por exemplo, a seriedade da mãe, a doença da irmã, o apago ao pai, a observância da família as festividades religiosas (inclusive os pais se abstêm de relações sexuais durante a Quaresma) e o padrão moral da época. Nisso transcorre cerca de 20% da narrativa.

            Após isso chegamos a uma Cristina adolescente (16 anos de idade) encontrando-se com Arne, por solicitação dele, para que pudesse falar-lhe antes que ele saísse de Joerundgaard. Ela vai até ele na condição de amiga, apesar de pertencerem a classes sociais diferentes. Ele fala a ela como um homem interessado em uma mulher, isto é, faz-lhe uma declaração, chegando a pedir-lhe que rompa seu noivado.

            Cristina está noiva de Simão, um dos rapazes da propriedade vizinha. Ela lhe é indiferente. Tanto no sentido de devotar a ele uma boa ou má afeição. O noivado foi firmado através de acordo entre seus pais. E, sendo esperado dela que simplesmente aceitasse. Aceita.

            E, é isso que Cristina responde a Arne. Além de uma das frases mais memoráveis do livro, e que já dá muito pano pra manga: Nunca poderia gostar tanto dum homem a ponto de fazer com que meus pais se voltassem contra mim por causa dele.    

            Aqui ainda temos uma jovem ingênua que não faz ideia do que uma pessoa é capaz de fazer ao se ver picada pela paixão. E, não somente a paixão. Mas também em prol de qualquer outro desejo que tenhamos – mas em breve descobrirá.

Mas, por hora, assunto encerrado (entre ela e Arne). Cada um segue seu caminho em direção à morte. O que nenhum dos dois sabe. A de Arne nos dias que virão. A de Cristina nas próximas semanas. A dele física. A dela espiritual.

Voltando pra casa, de onde saiu sem que ninguém soubesse, Cristina é interpelada por Betein, que tendo passado por Arne há pouco, liga um ponto ao outro e conclui que a moça não apenas se encontrou com aquele, como nesse encontro estendeu a ele seus favores (sexuais), portanto, eu também quero; eu também tenho direito, é isso que o comportamento de Betein comunica a ela. Ele a ataca. Ela resisti e foge. Fica com vergonha de ir pra casa, e contar o acontecido. Então, se encaminha à casa da mãe de Betein, que é ali perto, e diz a ela o que aconteceu, inclusive, que dando uma pedrada na cabeça dele, não sabe dizer se ainda está vivo ou não.

A mão corre em direção ao filho. E age de imediato pra que ele não permaneça nessa localidade. E onde esse sujeito vai parar? No acampamento de Arne. Que em sua primeira refeição juntos, o ataca e é morto. Nesse momento Undset não nos conta o porquê, porém conseguimos imaginar alguém do calibre de Betein gabando-se de um feito que jamais realizou, e que se tivesse realizado, seja na Idade Média, seja em nosso século, que espécie de homem vê alguma vantagem em expor a intimidade que teve com certa mulher? Ainda mais mediante a força? No mínimo o tipo que não merece intimidade nem mesmo com a pior de nós.

O corpo de Arne chega a Joerundgaard, e quando está sendo velado na casa de seus pais, sua mãe pergunta a Cristina porque essa não lhe beija o rosto, afinal, ela bem que tinha gostando de fazer isso um pouco antes (fazendo alusão ao encontro fortuito da moça para ouvir a declaração dele). O pai de Cristina, Lourenço, ouve isso. Fica ofendido. Exige que a mãe de Arne se desculpe.

Por conta desse incidente, o pai da moça resolve que o melhor é enviar a filha pro monastério mais próximo, afinal, assim a pouparia da difamação que está correndo contra ela no vilarejo. Será essa também uma oportunidade d’ela saber como a vida realmente é, assim pensa ele.

E realmente ela descobre. Se há uns meses vimos uma Cristina indo à floresta a pedido de um amigo; agora a vemos fazendo a mesmíssima coisa a pedido de um amante. Se antes vimos uma Cristina apedrejando um homem por atentar contra sua “honra”; agora vemos uma Cristina usando de mentiras para sair do monastério e ir a um quarto alugado (de uma mulher de moral questionável) onde ela e Erland possam se “amar”.

O que Cristina parece não se dar conta é de que deveria resistir a qualquer contato com Erlend com tanta ou até mais intensidade/rejeição que a que devotou a Betein, haja vista que tanto um quanto o outro, pertencem a uma mesma classe de homens. O que um faz por meio da força, o outro faz por meio da sedução. O que um não conseguiu usando de palavras acusadoras, o outro obtêm por meio de promessas. Promessas essas que, diga-se de passagem, já havia feito há dez anos, a uma outra mulher, Eline, a quem raptou (fugiu) da casa de seu marido, levou pra sua quinta, e gerou dois filhos.

 Mesmo ao saber disso, Cristina não abre mão de continuar se relacionando com Erlend. Quanto mais o tempo passa, mas rejeita a declaração feita a Arne: “nunca poderia gostar tanto dum homem a ponto de fazer com que meus pais se voltassem contra mim por causa dele.”. Cristina parece que não apenas esqueceu ter dito isso um dia, como também faz crer que jamais disse.  Até por que: “Sem dar fé disso, Cristina recolhia da conversa dele as mínimas coisas que o podiam tornar perfeito e mais querido e diminuir os erros que ela sabia Erlend haver cometido.”.

Estão nesse pé quando Simão, seu noivo, descobre o que está acontecendo. Aceita o rompimento. E em todo o tempo continua a tratando com o máximo de respeito, mesmo a moça tendo atitudes que são extremamente questionáveis para os padrões da época. E, ela, só desdém. Além disso fica procurando os pecados alheios, e mesmo se alegra em vê-los, como se encontrasse ai justificativa para os seus, algo no sentido de “está vendo!? Não sou só eu!”

O respeito de Simão a ela, chega ao ponto dele assumir a culpa pelo rompimento, ao invés de deixar que recai sobre ela, e assim fique desonrada. Ele, passa por um homem que não mantém a sua palavra, o que não é; mas isso não preocupa Cristina. Tampouco, considera o que Simão está considerando: se essa história vier a tona, ela não apenas terá dificuldade de conseguir alguém disposto a contrair núpcias consigo, como será verdadeiramente impossível! Além, é claro, do desgosto que garantiria aos pais.

Simão, se dispõe a assumir a culpa pelo rompimento perante todos, exceto o pai de Cristina. Poderíamos interpretar como um último subterfugio do rapaz, para demover Cristina, afinal, ela sempre foi muito apegada ao pai. Porém, o procedimento de Simão até então, faz crer que aquilo que ele declara ser sua motivação por trás disso, seja a que realmente há em seu coração: Lourenço é meu amigo. E, meu amigo quero que continue.

Assim é, e logo o pai de Cristina a busca no monastério. A consideração de Simão é tal, que tudo o que disse ao seu amigo foi que o casamento não ocorreria porque Cristina havia lhe declarado que seu amor já pertencia a outro, ou seja, ele não cita que a filha não é mais uma donzela, que estava tendo encontros fortuitos, e que, inclusive, flagrou-a na supracitada casa de “amores”.  

Tudo o que Lourenço sabe é que a filha rompeu o noivado por estar interessada em outro rapaz. Questiona quem é. Ela recusasse a dizer, até que tenha o consentimento do pai para casar-se com a pessoa em questão.

Não demora muito pra que ele descubra, e fica ainda mais decepcionado do que já estava. Isso só reforça sua decisão de não consentir que a filha se case com Erlend. A mãe fica na dúvida, pois teme que a filha se mate, como já havia ameaçado.

Estando o pai irredutível; Erlend cria uma maneira de raptar a moça. Que de pronto o segue alegremente, em momento algum demonstrando alguma preocupação com seus pais, e, após juntos assassinaram a amante anterior de Erlend, Eline - que lhes aparece no caminho, reitera sua decisão de continuar ao lado dele e por fim dizer: sei que não deixarei Erlend, nem que eu tenha de calcar aos pés meu próprio pai.

Uma fala e atitude muito diferente da inicial, há um ano naquele seu encontro com Arne: “Mas sei que não deixarei Erlend, nem que eu tenha de calcar aos meus pés o meu próprio pai.”

 Está disposta a calcar com os pés o pai, e ao declarar isso, não se dar conta de que não é algo que está disposta a fazer, mas sim algo que já vinha fazendo, está fazendo, e continuará a fazê-lo. A enunciação dessa frase não é, portanto, uma sinalização do que está disposta a fazer, mas sim uma confissão do que já fez!

O julgamento que fez a um casal de vizinhos (em sua juventude fizeram o mesmo que Erlend e Cristina) assim que conheceu Erlend, e de quem este é sobrinho, parece unir a voz de Cristina a do que o povo diria (se soubesse o que aconteceu e vem acontecendo), ao que seria enunciado pela moral da época. É, sem que ela saiba, o que ela em sã consciência, diria de si mesma se se comportasse a semelhança do supracitado casal. A sua fala do passado, torna-se, sem que ela se dê conta, uma espécie de Scronge que a diz: ah, então você também fez o que disse que jamais faria? Você também seguiu suas vontades? E por fim lhe pergunta: posso, então, condena-la pelo que, num passado não muito distante, você condenou outros?

Scronge virá-se para nós e pergunta a mesmíssima coisa, então, tudo o que podemos fazer é apertar os lábios, baixar a cabeça e soltar as pedras, pois entendemos que Cristina somos nós.

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