PEÇA EM UM ATO
O desespero de Viviana em pratos
Ou
O desespero de uma marionete
Ou
As mentiras que
Samara Paixão comprou
Personagens: Condutora do encontro. Viviana.
Marido. Esposa "feliz". Coro.
Ato 1
Cena
1
Cenário: uma garagem bem grande, de uma
residência, decorada com artigos das religiões budistas e hindu. Sentados em tamboretes, na parte mais funda
da garagem, os membros da banda de reggae tocam a música “Árvore”, sendo
acompanhados por duas dúzias de pessoas que há ali. Algumas dançam, outras
mechem-se suavemente. Entra a condutora
do encontro cantarolando o refrão de “Árvore”.
CONDUTORA
DO ENCONTRO: “vem me regar mãe, vem me regar...” Que delicia de música, hein,
gente bonita!? E fica ainda melhor com essa banda de primeira linha! A primeira
vez que ouvi “Árvore” era uma menininha, foi na escola, e criou em mim uma memória
afetiva ma-ra-vi-lho-sa! A diferença que faz bons professores, né? Vai ver o
universo me trouxe aqui hoje pra ter um reencontro com essa música tão bonita.
E tenho certeza que reservou algo pra vocês também. Tanto que nos fez vir aqui
hoje. Você emitiu uma energia. E o universo a trouxe de volta a você. E ele
pode trazer de tantos modos diferentes. Em forma de comida, gente, toda
naturalzinha, livre de agrotóxicos, graças a um projeto maravilhoso da Ludy!
Beijo, Ludy! Sucesso, querida! As velas
aromáticas, os incensos, os artesanatos! Pode ser ser a energia desse lugar, com
tanta paz e receptividade. Que ambiente acolhedor! É bom estar aqui, né? A
gente se sente bem! Se sente parte! Pode ter sido as apresentações que serão
feitas aqui no palco, feitas por mulheres empoderadas! Até porque o objetivo
desse projeto, Quintal Criativo, é dar visibilidade às mulheres! Falando nisso,
vamos começar as apresentações!?Acho que podemos começar com a Vivi. Pode ser
você, Vivi!? Está pronta!? Ah, ótimo! Então, com vocês, Viviana com a
apresentação “O desespero de uma marionete”, vem pro palco, Vivi!
(Entra
Viviana, se põe de joelhos no chão, com as pernas em um ângulo 180º, ergue os
braços e dá um alto urro, seguido de uma prece: a ti ofereço Gaia, minha mãe,
Terra que me gerou. Levanta-se e começa a caminhar da direita para a esquerda, para
então dar início ao monólogo).
VIVIANA:
Eu não acredito! Eu não posso acreditar! Eu não quero acreditar! Pois o
vislumbre de que de fato o monstro que se vê é real causa dor. Não medo, mas
dor!
(pausa de três segundos)
Oh, já sei: é cobrir a cabeça com um
lençol bem rápido, e crê firmemente, como crê a criancinha, que isso é o que
basta pra te proteger de qualquer coisa má que exista no mundo e queira te
pegar. Sim, cobrir a cabeça com o lençol bem rápido! Meu lençol! Meu lençol! Onde
está?
(Pega
um pano e o põe sobre a cabeça, baila de um lado a outro, após alguns segundos
retira lentamente o lençol do rosto e reinicia o monólogo).
VIVIANA:
A criança quando põe o lençol na cabeça sempre está deitada em uma cama, e o
mostro está de baixo dela, esgueirou-se pela porta e está de baixo dela. Mas se
não o vê, mesmo que ele esteja ali, é como se não existisse! O que não vemos
não tem o poder de nos machucar. Isso! Não pode fazer nenhum mal! Sim, nenhum
mal. Oh, sim, rápido, minha cama!
(Deita-se
em cima de um ator e se cobre com o lençol dos pés à cabeça, após alguns
segundos levanta-se assustada e reinicia o monólogo)
VIVIANA:
Meu Deus, ele está aqui! Mas, chama-lo de gatinho pode mudar sua natureza, e
ele já não será um monstro! As coisas são o que as nomeamos, não é mesmo!? Mas
e se isso não ocorrer na vida real? Se ocorrer só em desenhos!? Se for só para
ensinar as crianças que nem tudo é o que parece, que um monstro nem sempre é um
monstro!? Que pensamentos tolos! Que pensamentos tolos! Porque eles invadem a
minha mente!? Porque!? Porque!? Já sei! Já sei! Já sei!
(Vira-se
para o marido, e alterna o olhar e a fala entre ele e um espelho ao lado dele):
VIVIANA:
Por favor, minta pra mim, por favor, por favor, por favor, eu te imploro! Diga
que não é real! Diga que estou louca! Que sou esquizofrênica ou algo assim! Diga
que estou delirando! Fale que não passa de uma ilusão! Uma miragem! Estou em um
deserto é isso! Só pode ser isso!
Ou então jogue a culpa em um terceiro, “xingue-os
do que você é acuse-os do que você faz!” Desmoralize-o! Atenue sua própria
culpa, a torne inexiste, ou pelo menos tão fina quanto um véu! Oh, tape meus olhos!
Não, não, não me deixe ver. Eu suplico! Eu imploro!
Se a única maneira de continuarmos juntos
é eu crer que continuo sendo uma mulher valiosa, respeitável, fale então que é
isso que sou. Não importa quantas atitudes tenhas tido que comuniquem o
contrário. Só importa as tuas palavras de agora. Ainda que sejam mentirosas.
Minta pra mim! Minta! Pois eu comprarei cada uma das inacreditáveis mentiras
como se fossem as coisas mais criveis do mundo! Axiomas filosóficos! Verdades teológicas!
Pelo amor de Deus, não me deixe viver em
um mundo onde a realidade seja diferente das fantasias que carrego em minha
mente e em meu coração.
O
que farei da minha vida se não posso crer em tudo que vi na minha infância e
adolescência? Se não posso crer que o que há de melhor na vida é um
relacionamento semelhante ao dos meus pais? Que sou tão capaz e merecedora de
amor e cuidado quanto minha mãe!?
(Põe-se diante do marido, enquanto fala vai se curvando lentamente, até ficar ajoelhada):
VIVIANA: Meu deus, o que fazemos com a vida quando descobrimos que ela não é como acreditávamos em cada segundo de nossa existência?
(Espera alguns segundos por uma resposta, como essa não veem, da continuidade ao monólogo):
VIVIANA: Não me deixe viver em um mundo onde você não exista! Não importa quão mau você é! Não importa quanta dor cause em quem quer que seja! Ainda que este alguém seja eu. O que é a dor comprada a não te ter? ainda não inventaram uma palavra que consiga definir isso, ainda que palidamente.
Só me importa que esteja ao meu lado, e que o mundo inteiro veja isso! Eu preciso, eu preciso, eu preciso desesperadamente que olhem pra mim com admiração sem fim por ter você ao meu lado! Que me admirem por ter você! Por te pertencer! Todas as mulheres casadas com deuses são admiradas! Nisso reside a confirmação do valor de cada uma delas! Não nelas em si, mas no serem de quem são. No pertencerem a quem pertencem! A maior realização de uma mulher é ter um homem que a ame e cuide de cada parte da vida dela. Eu sou valiosa, pois um homem me ama e cuida de mim. Se assim não for que valor eu terei? Que valor terei se você não existir em minha vida!? Quem terá admiração por mim!? Quem ou o que poderá confirmar meu valor!? Nada nem ninguém! Será o meu fim! Minha destruição e meu inferno!
Não me lance fora desse paraíso onde você reina. Este paraíso todo criado de ilusões, e que tem como base a minha cegueira.
Você é o meu deus, o mundo precisa ver que o meu deus quer estar ao meu lado! O meu deus me atraiu. E eu respondi ao seu chamado.
(Recita o fragmento 32 de Safo, na tradução do professor Leonardo Gonçalves):
Ele me parece ser par dos deuses,
O homem que se senta perante ti
E se inclina perto pra ouvir tua doce
Voz e teu riso
Pleno de desejo. Ah, isso, sim,
Faz meu coração estremecer no peito.
Pois tão logo vejo teu rosto, a voz eu
Perco de todo.
Parte-se me a língua. Um fogo leve
Me percorre inteira por sob a pele.
Com os olhos nada mais vejo. Zumbem
Alto os ouvidos.
Verto-me em suor. Um tremor me toma
Por completo. Mais do que a relva estou
Verde e para a morte não falta muito
Ao que parece
(Retoma o monólogo):
VIVIANA: Eu te amo. Eu te amo mais do que a mim mesma. Muito mais do que a minha própria vida. Você é a minha vida. E sem você não há vida alguma. Eu te adoro! Eu te adoro! Eu te adoro! Pra isso nasci. Pra isso fui criada. E sem você minha vida não tem propósito algum!
(Ajoelha-se diante dele, de mãos unidas e começa a cantar Disfruto):
Me
complace amarte/ Disfruto acariciarte y ponerte a dormir/ Es escolofriante/ Tenerte
de frente, hecerte sorrir/ Daria cualquer cosa/ Por tan primorosa, por estar
siempre aqui/ E entre todas essas cosas/ Dejame quererte, entregate a mí/ No te
fallaré/ Contigo yo quiero envejecer/ Quiero darte um beso/ Perder conitgo mi
tempo/ Guardar tus secretos/ Cuidar tus momentos/ Abrazarte/ Esperarte,
adorarte/ Tenerte paciencia/ Tu loucura es mi ciencia (...).
(recita
a ele os versos que lhe são mais significativos):
Daria
cualquer cosa/ Por tan primorosa, por estar siempre aqui/ Contigo yo quiero
envejecer/ Perder contigo mi tempo/ Cuidar tus momentos.
(Fala
em reflexão aos versos cantados):
VIVIANA: Eu daria qualquer coisa pra ficar para sempre ao seu lado. A minha vida. A minha alma. A própria vida eterna. O que é a danação comparada a não te pertencer? A ser chamada de sua? O tempo que passamos juntos, é muito, mas ainda assim é nada.
Eu amo cuidar de você. De cada detalhe da
sua vida. Fazer por você o que você pode perfeitamente fazer, mas que me
impedir de fazer seria uma declaração de minha inutilidade.
CENA 2:
(Em
seu quarto, deitada sobre a cama, rosto coberto com um véu, desperta
lentamente):
VIVIANA: O que é isso. Um sonho? Sim, um sonho. Sonhei. Sonhei que estava em um lugar onde nunca estive. E que falava como nunca falei. A aparência era minha. A voz também. Mas aquelas palavras nunca me pertenceram. Não as conheço. Não as compreendo. O que elas querem dizer? Melhor, não pensar nisso. Minha cabeça dói. Preciso de remédio? Não, basta não pensar nesse sonho cheio de coisas esquisitas.
(Levanta-se,
troca de roupa, senta-se a mesa para tomar café, recebe uma mensagem da amante
do marido):
VIVIANA:
Eu não preciso que uma qualquer fale mal do meu marido. Isso é só inveja. O
diabo tentando destruir meu casamento. Até parece que vou dar ouvidos a essa
enviada do Satanás! Se for ouvir alguém será ele. Só a ele, pois ele sim me
deve satisfação. E ainda que tenha me traído, a culpa é dela, que não se dá ao
respeito, não se põe em seu lugar! E não dele, afinal, é homem, e homens tem
mesmo essa necessidade de buscar por quem usar. Não sei que diabo de fogo é
esse, estando eles tão bem servidos em casa. Não dei ouvidos a outras, não será
a essa que permitirei abalar minha felicidade!
CENA 3
(Anoitece, Volta a deitar. Sonha)
ESPOSA
“FELIZ”: Quem te mostrou o meu coração!? Quem te mostrou minha vida!?
(Volta-se pro marido):
ESPOSA
“FELIZ”: Eu pedi a você que não me expusesse a ninguém! Ainda que ficasse com
outras mulheres, que pra nenhuma falasse de mim! Ah, meu Deus, a traição pior
que a exposição dos nossos fracassos!? De como somos na realidade!? É como ser
posta nua! E em minha nudez serem vistos todos os meus defeitos. Ser visto que
minha vida não é tão boa, perfeita e feliz quando tão ardentemente me esforço
pra assim mostra-la.
(Para de olhar pro marido, volta o olhar pra um espelho e pra Viviana):
ESPOSA "FELIZ": Mostro bons cafés da manhã. Academia. Passeios com meu marido e nossa filha. Mostro praias, flores, algum estudo. Mostro que aprecio as coisas simples da vida. Até porque minha vida está, ordinariamente, cheia de coisas simples! Que outro remédio há se não mostra-las como sendo preciosíssimas, ainda que nada mais me cause que repulsa!?
(Dá as mãos à Viviana e juntas falam ao espelho):
Mostro, sobretudo, que não há no mundo mulher e família mais feliz que a minha. Se eu não tiver a felicidade, ainda que a de aparência, o quê terei? Ainda que eu seja, e sou, uma desgraçada profundamente infeliz, pelo menos poderei me dar a felicidade de aparentar o contrário ao mundo. E, de jamais admitir a mim mesma. Ai, meu Deus, outra vez essa dor de cabeça!? Toda vez, toda, que começo a pensar nisso isso acontece. Não há outro remédio: basta não pensar!
(Estapeiam a cabeça. A esposa "feliz", de braços pendentes ao lado do corpo, e cabisbaixa, se retira. Viviana volta a perguntar):
CORO: A realidade. Felicidade de aparência não é felicidade. Pessoas felizes não dizem que o são. Estão ocupadas demais sendo. Pessoas bonitas não falam que são bonitas, elas simplesmente são. Há também os inteligentes, que justamente por serem inteligentes, sabem que nada tem com a inteligência gabar-se de tê-la. Felicidade. Beleza. Inteligência. Ou qualquer outro atributo humano são auto evidentes. Pois a realidade assim o é. E tentar promover-se fazendo uso inadequado de qualquer um deles, é macula-los É uma mosca caindo no perfume. Macula-los é perde-los, às vezes um pouco, em outras um todo.
(Viviana leva as mãos à cabeça, a sacode de um lado a outro):
É não pensar, é não pensar....
Fim
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