PARTE I: 


As coisas não iam bem. Sabia que era pobre, assim nascera, e assim, provavelmente, morreria, a semelhança do seu pai, do seu avô e de mais dez chefes de família que o antecederá. Não seria ele a romper o elo, nem pro bem, nem pro mal. Recebera deles a pobreza, não a miséria, tinha, portanto, a obrigação de manter-se no mesmo nível, logo não ter centavos pra dar à filha já estava abaixo de sua dignidade de homem pobre, de descendente de todos aqueles, abaixo do legado que receberá, aquilo lhe ferirá o orgulho, sim, pobres também o tem, alguns até são riquíssimos nesse aspecto. Estariam entre os dez mais da Forbes, se a Forbes levasse esse critério em consideração. Os pobres a quem Jesus legou o reino dos céus, pertenciam a outras famílias de pobres. Não a dele. Que, inclusive aguardava-o ansiosamente no inferno.

Assim, mexido em seus brios, e com olhos continuamente molhados pela lembrança do “não tenho” dito a filha, que lhe pedirá dois reais; foi em boa hora que chegou-lhe, durante a aula do curso técnico, a propagando de vagas de emprego a dois estados de casa.

O problema seria a mulher concordar. Pensou demoradamente como convence-la. Estariam longe, mas as condições melhorariam, e a distância seria temporária. Ele iria, arrumava as coisas por lá e viria busca-las. Sabia que ela era muito apegada a sua família, principalmente a mãe, mas nisso também se dava um jeito, eles viriam nas férias pra visitar, e se ela quisesse vir antes, podia vir também, tanto ela quanto a menina. Seus pensamentos iam e vinham nesses e em outros argumentos; quando ao saltar do ônibus dera com a mulher saindo do açougue, em horário inabitual, e sem sacola nenhuma em mãos, mas tão absorvido estava em convence-la da oportunidade que lhe vinha, que não reparará em nada. Só em relatar-lhe o ocorrido e partir pro ataque. Precisava convence-la! E precisava que fosse de um modo que ela acreditasse ser ideia dela e não dele. “Em doze anos de relacionamento isso sempre funcionou. Basta ela pensar ser ideia dela, pra que imediatamente concorde, advogue mesmo em favor do ponto em questão, ainda que a ela só apresente desvantagens”, pensava ele, “mas que desvantagens o quê? Se é bom pra mim, com certeza será bom pra ela! impossível algo que vai me beneficiar já não ser motivo mais que suficiente pra que ela tome partido!” Mesmo munido desses pensamentos, ficou espantado ao não precisar apresentar nada além do relato de emprego a dois mil quilômetros dali. Pareceu-lhe que ela já queria ser convencida. Ele, desconfiado por natureza, por milagre não ligara o porquê de um aceite tão rápido e fácil. Atribuiu a submissão, afinal ela sempre fazia o que ele queria. Ele era o titereiro e ela a marionete. E, assim iriam longe. Nesses termos certamente chegariam as bodas de ouro! Não é exclusividade das virtudes o mérito de ligar um homem a uma mulher por anos a fio; nisso os vícios e tudo o que há de degradado e perverso no ser humano também o faz, e são mais os casais sobre sua égide do que os que são guiados por um anjo não torto.  


Obs.: em breve posto a segunda parte. 

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